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sábado, 2 de janeiro de 2016

Debate dos prós & contras entre a tradição e a democracia: Impactos da cópia/importação de modelos ocidentais em África/Guiné-Bissau – Parte IV


Para que o modelo tradicional possa ser eficaz, será preciso limar os picos negativos das tradições da Guiné-Bissau/África, o que vai exigir uma profunda mudança de mentalidades em coerência com a mudança da retórica de discursos e a mudança de procedimentos práticos exemplares, aspectos que estão bem trabalhados no meu livro. Os responsáveis políticos, intelectuais e os cidadãos guineenses/africanos não devem recusar o regime político democrático por razões inerentes à sua própria cultura, dado que não podem invocar o pretexto das tradições da Guiné-Bissau/África e das características culturais desse povo para se absterem de institucionalizar estruturas políticas participadas/representadas e democráticas, abertas a uma diversidade de opiniões e de interesses (Palmeira, 2006: 170).
A aproximação dos defensores da tradição e dos [neo]cabralistas à política pode, neste sentido, representar algum perigo. Por um lado, os defensores da tradição africana/guineense olham para a Democracia como um produto da modernidade, como algo importado do Ocidente, mas esquecem-se que a própria Democracia é muito antiga e que é, em si própria, uma tradição. Até porque desde Aristóteles (384-322 a.C.) até ao contexto actual não é consensual a ideia de que a Democracia seja um regime político típico do Ocidente (Mendes, 2010: 40-62).
Essa paixão desenfreada pela alternância do regime político capaz de governar com eficácia começou antes da chegada da democracia à Grécia (Canfora, 2007: 37-38). Isto é, a teoria clássica baseada na tradição aristotélica dos “regimes políticos”, conta-nos que uma das primeiras disputas de que se tem notícia em torno dos regimes políticos é narrada por Heródoto (III, 80-83), que descreve a discussão entre Otane, Megabizo e Dário sobre o futuro regime político Persa (hoje Irão) (Bobbio, 2003: 233; 2004: 320, 1081 vols. I, II)». Tudo dá entender que a Democracia tem a sua origem em alguns países de África/Médio Oriente – «Egipto, Líbano, Líbia, Síria, Irão, Iraque, etc.» – que são alvos de perseguição das principais potências ocidentais (Mendes, 2010: 49).
Por outro lado, o PAIGC e os defensores do [neo]cabralismo usam a tradição como “marioneta” para fazer valer as suas intenções, silenciando de forma progressiva a esmagadora maioria dos cidadãos guineenses. Ou seja, os [neo]cabralistas olham ainda para a Democracia na mesma perspectiva que Amílcar Cabral encarava a Democracia. Isto porque Amílcar Cabral estava contra a Democracia como regime político. De acordo com ele, referindo-se à Democracia na Grécia: a «Democracia para eles era só para os de cima, eles é que eram o povo, os outros eram escravos. Até hoje é a mesma coisa em muitos lados. Quem tem a força na mão, o Poder, faz a Democracia para ele» (Cabral, 1983: 111). Por esta via, Oscar Oramas (1998: 143) recorda-nos o sorriso irónico de Amílcar Cabral em algumas ocasiões, em que dizia: «sou um ditador democrático, pois tomo decisões e delas informo os meus companheiros». Na mesma ordem de ideias, muitos [neo]cabralistas & pró-PAIGC acham que a Democracia é o principal responsável pelo mal-estar de África/Guiné-Bissau. Este ponto de vista é evidente quando o Doutor Julião Soares Sousa (27-04-2010), um dos expoentes da corrente de pensamento [neo]cabralista afirma «[…] que a Democracia guineense deveria ser suspensa durante dez anos, e que o país deveria ser entregue às Nações Unidas durante esse período, para que a Guiné-Bissau pudesse estabilizar-se […]».
Estes parágrafos são, em parte, boas explicações para que os guineenses percebam por que razão a Democracia está passar pelos piores destinos na Guiné-Bissau. Sugiro aos [neo]cabralistas que tentem descolar-se um pouco das ideias dos seus mestres, Líderes africanos (entre os quais Amílcar Cabral), caso contrário, não conseguirão adaptar os seus discursos, pensamentos, acções, as suas visões do mundo e da vida às circunstâncias actuais, que exigem mais moderação, humildade, humanismo e ponderação.
Gostaria de chamar a atenção dos defensores das tradições africanas/guineenses, no sentido de terem em conta alguns aspectos. Por um lado, é interessante ouvir a preocupação de quem defende que «[…] é possível e necessário um equilíbrio inteligente entre Poder e etnicidade, uma conciliação do mérito com tal representatividade, sendo que a paz social e a evolução harmónica do país exigem esse mecanismo […]» (Kosta, 2007: 675). Este argumento é compatível também com a preocupação de Carlos Lopes quando afirma que «[…] a construção do Estado exige essa conjugação étnica, que está precisamente na base das contradições entre a racionalidade étnica e a racionalidade do Poder do Estado. Ou seja, podemos afirmar que a etnia tem, enquanto entidade homogénea, uma ideologia que lhe é própria. Mas o Estado, se nasce da conjugação étnica, é uma instituição centralizada que possui também a sua ideologia. No entanto, é no momento de encontro dessas duas ideologias, de duas lógicas, que há possibilidade de errar nas relações de Poderes institucionalizadas […]» (Lopes, 1982: 32). Estes apelos são importantes. Mas, é preciso muita cautela. Porque África está inundada de conflitos étnicos, dos quais são exemplo a onda de violência xenófoba na África do Sul contra os imigrantes, causada pelo Rei zulu, Goodwill Zwelithini. Comportamentos deste género são perigos quando vêm de um Poder tradicional paralelo ao Aparelho do Poder do Estado (Público, 20-04-2015).
Por outro lado, não servem as justificações dos defensores das tradições para o possível enquadramento dos Régulos/Chefes tradicionais nas actuais estruturas políticas do Aparelho do Poder do Estado. O próprio Régulo José Saico Embaló, porta-voz dos Régulos/Chefes tradicionais, recusou essa possibilidade, quando expressou que «[…] O verdadeiro Poder de representação do povo está nas nossas mãos, porque nós não somos eleitos, nem somos exonerados, senão por obra de Deus, com a nossa morte […]» (Sapo, 10-09-2015). Ou seja, papel dos Régulos/Chefes tradicionais na manutenção da ordem e na transmissão de valores culturais deve ser reforçado e reabilitado, desde que envolva a colaboração e definição de termos de referência claros e sem acumulação de cargos/funções (Handem, 03-05-2013).
Como Sociólogo e Politicólogo guineense/africano, considero que, se o regime político democrático for descartado a favor de um modelo dito “puramente africano”, há uma grande possibilidade de a língua portuguesa poder vir a ser também descartada como língua oficial dos PALOP [e contudo Amílcar Cabral dizia que «o idioma português é uma das melhores coisas que os portugueses nos deixaram» (Palmeira, 2006: 169-170)]. Ou seja, quem recusa aceitar a Democracia como regime político apropriado para África não poderá aceitar as línguas europeias em África. No entanto, este aspecto não é considerado por Portugal e nem pelo sector intelectual português/ocidental que, geralmente só se referem ao facto de o regime político democrático não pertencer nem ser adequado para a Guiné-Bissau/África.
De acordo com Karl Popper, as tradições podem ter uma função dupla: por um lado, criam uma certa ordem, ou uma estrutura social e, por outro lado, fornecem uma base a partir da qual podemos agir, «algo que podemos criticar e mudar». Adopto, tal como Popper, a segunda visão. Reconheço que, mesmo quando defendemos que algumas tradições devem ser rejeitadas e substituídas, «deveríamos permanecer sempre conscientes do facto de que toda a crítica social e todo o melhoramento da sociedade têm de ter como referência um quadro de tradições sociais, entre as quais algumas são criticadas por oposição a outras». Assim, é possível substituir uma tradição intolerante, segregadora e elitista por outra tradição mais tolerante, liberal e democrática. O que não devemos nunca é aceitar a tradição como um dado adquirido, imutável e isento de críticas (Popper, 2006: 169-185).
Para mais informações, consultar o meu livro: Mendes, Livonildo Francisco (2015). Modelo Político Unificador – Novo Paradigma de Governação na Guiné-Bissau (pp. 218, 245, 267-269, 279-281, 311, 548-549). Lisboa: Chiado Editora.

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