Para que o modelo tradicional possa ser eficaz,
será preciso limar os picos negativos
das tradições da
Guiné-Bissau/África, o que vai exigir uma profunda mudança de mentalidades em coerência
com a mudança da retórica de discursos
e a mudança de procedimentos práticos
exemplares, aspectos que estão bem trabalhados no meu livro. Os responsáveis políticos, intelectuais e os cidadãos guineenses/africanos não devem recusar o regime político democrático por razões
inerentes à sua própria cultura, dado que não podem invocar o pretexto das tradições
da Guiné-Bissau/África e das características culturais desse povo para se
absterem de institucionalizar estruturas
políticas participadas/representadas e democráticas, abertas a uma
diversidade de opiniões e de interesses (Palmeira, 2006: 170).
A aproximação dos defensores da tradição e dos [neo]cabralistas
à política pode, neste sentido, representar algum perigo. Por um lado, os defensores da tradição africana/guineense olham para a Democracia como um produto
da modernidade, como algo importado
do Ocidente, mas esquecem-se que a própria Democracia é muito antiga e que é, em si própria, uma tradição. Até
porque desde Aristóteles
(384-322 a.C.) até ao contexto actual não é consensual a ideia de que a
Democracia seja um regime político típico do Ocidente (Mendes, 2010: 40-62).
Essa paixão desenfreada pela alternância do regime político capaz de
governar com eficácia começou antes da chegada da democracia à Grécia (Canfora, 2007: 37-38). Isto é,
a teoria clássica baseada na tradição
aristotélica dos “regimes políticos”, conta-nos que uma das primeiras
disputas de que se tem notícia em torno dos regimes políticos é narrada por Heródoto (III, 80-83), que descreve a
discussão entre Otane, Megabizo e Dário sobre o futuro regime político Persa (hoje Irão) (Bobbio, 2003: 233; 2004: 320, 1081 vols. I, II)». Tudo dá
entender que a Democracia tem a sua origem em alguns países de África/Médio Oriente – «Egipto, Líbano, Líbia, Síria,
Irão, Iraque, etc.» – que são alvos de
perseguição das principais potências
ocidentais (Mendes, 2010: 49).
Por outro lado, o PAIGC e os defensores do [neo]cabralismo usam a tradição como “marioneta” para fazer valer as suas
intenções, silenciando de forma
progressiva a esmagadora maioria dos cidadãos
guineenses. Ou seja, os [neo]cabralistas olham ainda para a Democracia na mesma perspectiva que Amílcar Cabral encarava a Democracia.
Isto porque Amílcar Cabral estava contra a Democracia como regime
político. De acordo com ele, referindo-se
à Democracia na Grécia: a «Democracia para eles era só para os de cima,
eles é que eram o povo, os outros eram escravos. Até hoje é a mesma coisa em
muitos lados. Quem tem a força na mão, o Poder, faz a Democracia para ele»
(Cabral, 1983: 111). Por esta via, Oscar
Oramas (1998: 143) recorda-nos o sorriso irónico de Amílcar Cabral em algumas ocasiões, em que dizia: «sou
um ditador democrático, pois tomo
decisões e delas informo os meus companheiros». Na mesma ordem de ideias,
muitos [neo]cabralistas & pró-PAIGC acham que a Democracia é o principal responsável pelo mal-estar de África/Guiné-Bissau. Este ponto de vista é evidente quando
o Doutor Julião Soares Sousa
(27-04-2010), um dos expoentes da corrente de pensamento [neo]cabralista afirma
«[…] que a Democracia guineense deveria ser suspensa durante dez anos, e que o país deveria ser entregue às Nações Unidas durante esse período,
para que a Guiné-Bissau pudesse estabilizar-se […]».
Estes parágrafos são, em parte, boas explicações para que os guineenses
percebam por que razão a Democracia está passar pelos piores destinos na Guiné-Bissau. Sugiro aos [neo]cabralistas que tentem
descolar-se um pouco das ideias dos
seus mestres, Líderes africanos (entre os quais Amílcar Cabral), caso
contrário, não conseguirão adaptar os seus discursos,
pensamentos, acções, as suas visões do
mundo e da vida às
circunstâncias actuais, que exigem mais moderação,
humildade, humanismo e ponderação.
Gostaria de chamar a atenção dos defensores das
tradições africanas/guineenses, no sentido de terem em conta alguns aspectos.
Por um lado, é interessante ouvir a preocupação de quem defende que «[…] é possível e necessário um equilíbrio inteligente entre Poder e etnicidade, uma conciliação do
mérito com tal representatividade, sendo que a paz social e a evolução
harmónica do país exigem esse mecanismo […]» (Kosta, 2007: 675). Este
argumento é compatível também com a preocupação de Carlos Lopes quando afirma que «[…] a
construção do Estado exige essa conjugação étnica, que está precisamente na
base das contradições entre a
racionalidade étnica e a racionalidade do Poder do Estado. Ou seja, podemos
afirmar que a etnia tem, enquanto
entidade homogénea, uma ideologia
que lhe é própria. Mas o Estado, se nasce da conjugação étnica, é uma instituição centralizada que possui
também a sua ideologia. No entanto, é no momento de encontro dessas duas
ideologias, de duas lógicas, que há
possibilidade de errar nas relações de Poderes institucionalizadas […]»
(Lopes, 1982: 32). Estes apelos são importantes. Mas, é preciso muita cautela. Porque África está inundada de conflitos
étnicos, dos quais são exemplo a
onda de violência xenófoba na África do
Sul contra os imigrantes, causada pelo Rei
zulu, Goodwill Zwelithini. Comportamentos deste género são perigos quando vêm
de um Poder tradicional paralelo ao
Aparelho do Poder do Estado (Público, 20-04-2015).
Por
outro lado, não servem as justificações
dos defensores das tradições para o possível enquadramento dos Régulos/Chefes tradicionais nas actuais estruturas políticas do Aparelho do Poder do Estado. O próprio Régulo José
Saico Embaló, porta-voz dos Régulos/Chefes tradicionais, recusou essa
possibilidade, quando expressou que «[…] O verdadeiro
Poder de representação do povo está nas nossas mãos, porque nós não somos
eleitos, nem somos exonerados, senão por obra
de Deus, com a nossa morte […]» (Sapo, 10-09-2015). Ou
seja, papel dos Régulos/Chefes tradicionais na manutenção da ordem e na transmissão
de valores culturais deve ser reforçado
e reabilitado, desde que envolva a colaboração
e definição de termos de referência
claros e sem acumulação de cargos/funções (Handem, 03-05-2013).
Como Sociólogo e Politicólogo guineense/africano, considero que, se o regime
político democrático for descartado a favor de um modelo dito “puramente africano”, há uma grande
possibilidade de a língua portuguesa
poder vir a ser também descartada como língua oficial dos PALOP [e contudo Amílcar
Cabral dizia que «o idioma português é uma
das melhores coisas que os portugueses nos deixaram» (Palmeira, 2006:
169-170)]. Ou seja, quem recusa aceitar a Democracia
como regime político apropriado para África não poderá aceitar as línguas
europeias em África. No entanto, este aspecto não é considerado por Portugal e nem pelo sector intelectual português/ocidental que, geralmente só se
referem ao facto de o regime político democrático não pertencer nem ser
adequado para a Guiné-Bissau/África.
De acordo com
Karl Popper, as tradições podem ter uma função
dupla: por um lado, criam uma certa
ordem, ou uma estrutura social
e, por outro lado, fornecem uma base
a partir da qual podemos agir, «algo
que podemos criticar e mudar». Adopto,
tal como Popper, a segunda visão.
Reconheço que, mesmo quando defendemos que algumas
tradições devem ser rejeitadas e substituídas, «deveríamos permanecer
sempre conscientes do facto de que toda
a crítica social e todo o melhoramento da sociedade têm de ter como referência um quadro de tradições sociais, entre as quais algumas são criticadas por oposição
a outras». Assim, é possível substituir uma tradição intolerante, segregadora
e elitista por outra tradição mais tolerante, liberal e democrática. O
que não devemos nunca é aceitar a
tradição como um dado adquirido, imutável e isento de críticas (Popper,
2006: 169-185).
Para mais
informações, consultar o meu livro: Mendes, Livonildo Francisco (2015). Modelo Político Unificador – Novo Paradigma
de Governação na Guiné-Bissau (pp. 218, 245, 267-269, 279-281, 311, 548-549).
Lisboa: Chiado Editora.
Imagens retiradas
de: http://www.infohub.com/vacation_packages/30309.html
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