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segunda-feira, 25 de julho de 2016

Do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça aos papéis do Panamá/Wikileaks guineenses

Excelentíssimos leitores, como prometido, o post de hoje debruça-se sobre declarações de Domingos Simões Pereira «DSP» acerca do acórdão n.º 4/2016 do Supremo Tribunal de Justiça «STJ», da propriedade intelectual do programa «Terra Ranka» e das invasões de privacidade (a que chamarei os papéis do Panamá/Wikileaks guineenses). Tentarei demonstrar que é possível desvendar ligações e segredos de líderes políticos sem recorrer à invasão da sua privacidade.
Primeira parte. A propósito do “avião-fantasma” que discuti no post anterior, o Primeiro-Ministro «PM» Baciro Djá já veio a público desmentir as palavras de DSP, confirmando a aterragem de um avião no aeroporto internacional do país na semana passada, onde seguia um emissário do Rei da Arábia Saudita. O PM disse ainda que o emissário do Monarca saudita foi recebido pelo chefe da casa civil da presidência guineense, Marciano Barbeiro, uma vez que o Presidente da República «PR» José Mário Vaz «Jomav» se encontrava em visita privada a Portugal (RFI, 22-07-2016). Parece que as autoridades guineenses ouviram o meu apelo para que esta situação fosse rapidamente esclarecida...
Segunda parte. Nos últimos dias, DSP tem feito várias declarações públicas – entre elas, a de que o programa “Terra Ranka” é uma propriedade intelectual do PAIGC, e que não deve ser utilizado por outras instituições. Tal como eu já tinha aconselhado num post anterior, caso não houvesse reconciliação e cedências entre as facções em conflito no PAIGC, a ala pró-Jomav poderia facilmente descartar DSP e a sua ala política, utilizando os seus planos de um Governo de Inclusão e o seu programa «Terra Ranka» (que DSP tinha proposto inicialmente e Jomav tinha recusado). Mesmo estando contra a ideia de Inclusão e de «Terra Ranka», Jomav e o Governo de Baciro Djá poderiam aproveitá-la tal como Lula da Silva materializou o plano de Fernando Henrique Cardoso no Brasil. E é isso que está a acontecer: o Governo de Baciro Djá está a implementar diversas medidas previstas no plano de DSP. Isto prova que a ala pró-DSP deve estar atenta e ler os meus trabalhos com atenção (em especial o meu livro), em vez de andar a defender a implementação do modelo caboverdiano na Guiné-Bissau (Sapo Notícias, 16-07-2015).
Além disso, será que faz sentido reclamar a propriedade intelectual de um plano que foi apresentado como sendo de todos os guineenses? Para quem conhece bem os guineenses, põe-se a questão de saber se os slogans «Terra Ranka» e «Mon na Lama» não constituem o centro dos problemas entre DSP e Jomav?
Terceira parte. O STJ da Guiné-Bissau declarou que é constitucional o decreto presidencial que nomeou o Governo liderado por Baciro Djá. Os juízes consideraram que o PR Jomav cumpriu as formalidades constitucionais ao nomear o Governo liderado por Baciro Djá, uma vez que não recebeu garantias de estabilidade parlamentar por parte do PAIGC, partido vencedor das eleições de 2014 (Sapo Notícias, 15-07-2016).
Tal como tenho vindo a argumentar, eu não estou a favor do modelo político de governação em vigor na Guiné-Bissau, nem com o Governo de Iniciativa Presidencial ou o Governo de Incidência Parlamentar «GIP», no entanto, estes acontecimentos não constituem uma surpresa para mim. Faço uma análise com base no rigor científico e na imparcialidade. Os leitores que têm acompanhado este blogue saberão disso.
No seu discurso na ANP, Jomav afirmou que «caso não houvesse disponibilidade política, séria e urgente por parte do partido formalmente maioritário [PAIGC com 57 Deputados], para uma “solução abrangente” poderia ser forçado, dentro do quadro parlamentar, a considerar outras opções governativas [GIP] que assegurassem a estabilidade até ao fim da legislatura». Assim, Jomav “puxou” temporariamente os Deputados eleitos (tanto do PRS como do PAIGC) e o Supremo Tribunal de Justiça «STJ», piscando-lhes o olho e transformando-os em aliados. Ao mesmo tempo, “empurrou” Carlos Correia e DSP para fora, ao admitir a possibilidade de criar um GIP. E poderia fazê-lo com o fundamento da perda da maioria absoluta da parte do PAIGC. Esta perda de 15 Deputados expulsos/retornados dá uma nova maioria ao PRS, que tem 41 Deputados, tal como frisaram DSP e o Conselho de Ministros. Este Governo de Incidência Parlamentar «GIP» é Constitucional tanto em Portugal como na Guiné-Bissau, tendo em conta que cabe ao PR apenas proporcionar as condições de aproximação entre os partidos políticos, favorecer eventualmente acordos parlamentares, mas nunca patrocinar soluções governativas à margem do Parlamento e sem o aval dos partidos representados no Parlamento. De acordo com o modelo em vigor, não basta vencer as eleições legislativas, mas é preciso garantir os votos adequados no Parlamento, para que se possa governar (CRGB, 1996: arts. 62.º-104.º; Jornal de Notícias, 25-11-2015; Novais, 2010: 73-121, 461- 463). Aqueles que são contra a criação de um GIP na Guiné-Bissau, devem apresentar um modelo alternativo, já que a CRGB prevê claramente esta modalidade, como demonstra a própria História do sistema político de Governo misto semipresidencialista.
É claro que o PAIGC venceu as eleições, no entanto, é preciso que essa vitória seja traduzida por uma maioria na Assembleia Nacional Popular «ANP». Neste momento, devido aos acontecimentos ocorridos, o PAIGC não consegue concretizar esta maioria, por isso é preciso arranjar uma alternativa. Veja-se por exemplo o caso português (embora seja diferente): o PSD/CDS ganhou as eleições, mas não tinha uma maioria parlamentar. Por isso, um acordo entre todos os outros partidos permitiu formar um Governo alternativo. E a Espanha está viver a mesma lengalenga. A perda da maioria absoluta do PAIGC (pela perda de confiança de voto dos 15 Deputados expulsos/retornados), fez com que ficasse apenas com uma maioria relativa (ou seja, os votos do PAIGC estão abaixo de 50%, por isso se todos os restantes Deputados se unirem, ficam em maioria). Isto não significa que aqueles 15 Deputados deixaram de ser do PAIGC, mas apenas que o seu sentido (confiança) de voto mudou, mudando assim a dinâmica de maioria na ANP.
O ex-PM e líder do PAIGC, DSP, afirmou que o partido vai aceitar a decisão do STJ da Guiné-Bissau em relação à nomeação do novo PM. Em conferência de imprensa na sede do partido, DSP questionou como é possível o mesmo Tribunal que, há cerca de um ano foi contundente e pedagógico na sua deliberação, voltar atrás e, desta feita, seguir outro caminho, ignorar e até ridicularizar a sua decisão anterior. DSP assinalou que todos os políticos devem respeitar as decisões judiciais, pelo que o seu partido também irá aceitar o veredicto do STJ, contudo, exigiu também o cumprimento do acórdão 1/2015, que considera inconstitucional a primeira nomeação de Baciro Djá por Jomav (A Bola, 18-07-2016).
É bom saber que DSP decidiu acatar as decisões do STJ, contudo, resta saber se esta decisão terá repercussão na prática. Se realmente DSP pretende acatar a decisão, porque remeteu para o acórdão 1/2015? Estas declarações são paradoxais – como podem cumprir-se ao mesmo tempo os dois acórdãos, com decisões diferentes tomadas em momentos diferentes? Parece-me que deste modo nada vai ser cumprido. Se DSP pensa que as duas situações são iguais (primeira e segunda nomeação de Baciro Djá), é porque a Guiné-Bissau não pode sair da inconstitucionalidade. Recuando um pouco na história, tomemos o caso da nomeação de Carlos Correia como PM, pelo PR Nino Vieira: esta nomeação foi considerada, na altura, inconstitucional, por não cumprir os requisitos estabelecidos na Constituição da República. Nino Vieira exonerou Carlos Correia, tal como Jomav exonerou Baciro Djá após a sua primeira nomeação. Depois disto, Nino Vieira cumpriu os requisitos necessários e voltou a nomear Carlos Correia como PM (tal como Jomav fez na segunda nomeação de Baciro Djá). Se os partidos da oposição na Guiné-Bissau utilizassem a lógica de que DSP está a usar, o STJ teria que voltar atrás na história, para considerar a segunda nomeação de Carlos Correia como inconstitucional (aplicando-se o mesmo a outras decisões tomadas no passado). Mesmo tratando-se das mesmas pessoas, isso não implica que os factos são os mesmos nas duas decisões – uma pessoa pode produzir factos diferentes tal como vários factos podem recair sobre a mesma pessoa.
Assim, tanto a primeira nomeação de Carlos Correia como a de Baciro Djá diferem das suas segundas nomeações, porque as circunstâncias se alteraram. O que recomenda o princípio da igualdade deve ser ponderado com as circunstâncias práticas. Senão, olhemos para o princípio da igualdade, segundo o qual todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. Subentende-se que não podemos tratar ou julgar todas as pessoas de igual maneira, admitindo-se que as situações iguais sejam tratadas de maneiras iguais e as situações diferentes de maneiras diferentes (Mendes, 2010: 72).
Tal como argumentei no passado mês de Maio, na posição de desvantagem de DSP, ele deveria começar por acatar a decisão do STJ, e fazer as cedências de que já falei, nomeadamente, pedir desculpas aos 15 Deputados expulsos/retornados, procurando reconciliar-se com eles, com Jomav, com o PRS, e com os Veteranos de Guerra da ala pró-Jomav, como eu já tinha referido anteriormente. Defendi que, se DSP não negociasse com os 15 Deputados expulsos/retornados, em paralelo com o PRS, as coisas poderiam correr-lhe mal, e eles poderiam dificultar-lhe a vida (não entrando no Governo, ficando no Parlamento para desequilibrar a maioria absoluta do PAIGC). 
Quarta parte. Nas suas declarações recentes, DSP referiu também os casos de invasão de privacidade, queixando-se de terem sido violadas as suas correspondências electrónicas pessoais. Uma questão central neste caso prende-se com uma troca de emails entre DSP e o seu cunhado, o Professor Doutor Emílio Kafft Kosta, nos quais se depreende que DSP estaria a receber conselhos e instruções daquele. Encaro este caso de violação de blogs, contas de email e perfis de Facebook, como os «papéis do Panamá/Wikileaks guineenses». Perante estes factos, cabe-me formular as seguintes questões: como é que esta guerra começou? Quem foi o primeiro a atacar? Uma coisa que é juridicamente condenável é também politicamente ou eticamente condenável? Quem é o alvo central dos ataques? E quem sofreu danos colaterais? Deveria DSP ter nomeado o seu cunhado como conselheiro? Como poderia Kafft Kosta proteger a sua integridade? Porque considero isto de papéis do Panamá/Wikileaks guineenses?
No meu entender, por um lado, DSP tem razão suficiente em considerar que a violação de privacidade constitui um crime grave que deve ser punido pela lei. Por outro lado, DSP foi bastante ingénuo ou negligente, por deixar estas correspondências desprotegidas. Aquilo que é condenável juridicamente, pode ser aceitável ética e politicamente, porque ajuda a sociedade a conhecer as facetas ocultas daqueles que procuram conquistar a nossa confiança. Numa guerra aberta como a que estamos a viver, e face ao líder reformador que DSP pretende ser, DSP deveria ter o máximo dos máximos dos cuidados com tudo o que pode pôr em causa a sua credibilidade. Sendo doutorando em Ciência Política, deveria ter em conta as palavras de Plutarco (46 a.C – 120 a. C.): o homem político pode não conseguir afastar todo o mal da sua alma, mas deve suprimir os defeitos mais salientes da sua personalidade. Porque os cidadãos examinam todas as acções dos políticos, mesmo aquelas que parecem mais pequenas e insignificantes. Nos assuntos públicos, o crédito que inspira o carácter tem um peso tão grande como o seu contrário (Plutarco, 2009: 12-18).
Do meu ponto de vista, neste caso, teria sido melhor se DSP fosse transparente e abrisse o jogo, nomeando o seu cunhado como conselheiro, em vez de deixar que as notícias viessem a público desta forma, denegrindo a imagem de ambos. Kennedy, ex-presidente dos EUA, nomeou o seu irmão como Procurador-Geral da República, marcando uma posição. Claro que isso não impediu o seu assassinato, tal como a nomeação de Kafft Kosta como conselheiro poderia não impedir a queda da DSP, mas enquadrar-se-ia na máxima de que “o melhor segredo é aquele que toda a gente conhece”. Torna-se hoje mais fácil perceber porque Kafft Kosta não criticava DSP, proferindo vários discursos que o posicionavam até contra Jomav. Deste modo, a sua imparcialidade estava já comprometida e esta divulgação de emails vem apenas confirmar aquilo que já sabíamos. Teria sido mais útil a Kafft Kosta se, antes das suas intervenções, fizesse uma declaração do seu conflito de interesses, esclarecendo a sua ligação pessoal com DSP. Deste modo, o seu discurso tornar-se-ia mais transparente e a plateia olharia para ele com uma maior confiança. Assim, DSP teria também oportunidade de fundamentar publicamente o seu discurso, invocando o parecer de um grande especialista na matéria. Caberá aos dois, em conjunto, esclarecer a opinião pública sobre todas estas situações comprometedoras. Apesar de ser o alvo central dos ataques, DSP já estava “queimado” politicamente e não sofreu grandes consequências. Já Kafft Kosta, sofreu fortemente com os danos colaterais e ficou pior na fotografia, pela imagem de grande respeitabilidade e profissionalismo a que sempre nos habituou (e que agora, de certa forma, se desmoronou).
É difícil perceber quem começou esta guerra, uma vez que se têm sucedido ataques de um lado e de outro, expondo diversas conversas com altas figuras da política guineense de ambos os lados. Mas a guerra e a política são faces da mesma moeda. Ou seja, se entendemos a guerra como a continuação da política por outros meios, então devemos perceber também que a política é a continuação de guerra com outros meios (Arendt, 2007: 125; Foucault, 2002: 283; Kosta, 2007: 646; Lara, 2000: 22). A divulgação destes documentos pode, no meu entender, ser comparada com os fenómenos do Wikileaks e dos papéis do Panamá, que trouxeram a público um grande número de documentos comprometedores e indiciadores de crimes/infracções, envolvendo governantes, empresários, figuras públicas, líderes mundiais, etc. Tal como com os documentos do Wikileaks e com os papéis do Panamá, haverá ainda muita coisa por revelar no caso guineense, mas deixo um aviso: todo o cuidado é pouco para evitar consequências imprevisíveis, que mudem a maré de azar de DSP para se enquadrar na metáfora de que “há males que vêm por bem”.
Para terminar, vou dar um exemplo de como é possível desvendar os segredos de alguém pelos seus actos, sem, contudo, invadir a sua privacidade – do ponto de vista da Sociologia e da Ciência Política. O exemplo que vos trago diz respeito à teia complexa de relações que se podem estabelecer entre DSP, o Doutor Carlos Lopes «CL» e o Professor Doutor Boaventura de Sousa Santos «BSS». Em primeiro lugar, CL trabalhou durante algum tempo com BSS, assim como o irmão de DSP, Bartolomeu Simões Pereira (in memoriam). Em segundo lugar, CL escreveu um livro intitulado “Compasso de Espera”, (com o subtítulo “O Fundamental e o Acessório na Crise Africana”), dedicado a Mário de Andrade e Bartolomeu Simões Pereira (seu pai intelectual e seu irmão espiritual), cujo prefácio foi escrito por BSS (Lopes, 1997: 5). A ligação a estas duas pessoas, a quem dedicou o livro, indiciam já uma proximidade entre CL e o PAIGC.
Em terceiro lugar, DSP homenageou CL com um passaporte diplomático do Estado da Guiné-Bissau (Geba Press, 20-10-2014). Esta homenagem com entrega do passaporte diplomático que DSP fez a CL, por um lado, pode ser interpretada como uma retribuição pela admiração/respeito que CL revela para com Bartolomeu Simões Pereira, irmão mais velho de DSP. Por outro lado, este gesto de DSP pode ser enquadrado na leitura sociológica de que «algumas ajudas acabam muitas vezes por revelar-se compensatórias, se avaliadas a longo prazo, porque têm implicações que só se revelam posteriormente: uma ajuda nunca é só uma ajuda, implica a retribuição daquele que é ajudado, seja de forma directa ou indirecta com proveitos esperados no mercado». Deste ponto de vista analítico o mercado pode ser económico, político ou de trabalho (Lin, 2001: 19 citado por Portugal, 2007: 15). Em quarto lugar, DSP e BSS têm-se cruzado, nomeadamente, em Cabo Verde, por ocasião do lançamento do livro da Doutora Eurídice Monteiro e do próprio BSS (RTP África, 15-05-2015). Este encontro terá sido apenas uma coincidência?
Todos estes factos podem ser analisados em conjunto, para retirar conclusões sobre as relações entre estas personalidades, sem ser necessário recorrer a métodos ilícitos. Em síntese, posso dizer que, apesar de não existirem partidos políticos propriamente ditos na Guiné-Bissau, do ponto de vista da Ciência Política, existe um partido Conde-Drácula que morde e transforma toda a gente em Vampiros políticos, ou seja, que vai procurando perpetuar a sua influência na sociedade guineense de todas as formas possíveis ao seu alcance. E quando alguém é mordido pelo vampiro, transforma-se também em vampiro e já não pode atacar os outros da sua espécie, como vemos no filme «Diário Secreto de um Caçador De Vampiros» (Abraham Lincoln: Vampire Hunter). Todos estamos sujeitos a ser mordidos se formos apanhados desprevenidos…
Excelentíssimos leitores, termino com uma palavra de ânimo para o Professor Doutor Kafft Kosta, a quem prestei a devida homenagem na minha dissertação de mestrado, tese de doutoramento e livro (especialmente entre as páginas 203-282). O seu contributo é inestimável e os devidos esclarecimentos poderão facilmente repor a verdade dos factos e preservar sua reputação.
Para mais informações, consultar o meu livro: Mendes, Livonildo Francisco (2015). Modelo Político Unificador – Novo Paradigma de Governação na Guiné-Bissau (pp. 93, 111-117, 163-164, 185, 199-200, 536, 544). Lisboa: Chiado Editora.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Amine Saad, o memorial da escravatura e as toupeiras guineenses

Caríssimos leitores, no post de hoje trago-vos algumas reflexões sobre a ida de Amine Saad para o Tribunal Penal Internacional «TPI»; o novo Memorial dedicado à escravatura e tráfico negreiro em Cacheu; e a chegada de um «avião-fantasma» denunciada por Domingos Simões Pereira «DSP». No Domingo voltarei com um novo post sobre as recentes declarações de DSP a propósito do acórdão n.º 4/2016 do Supremo Tribunal de Justiça.
Primeira parte. Amine Saad, de 61 anos, natural de Mansoa, vai figurar numa lista de advogados cuja missão será a de assistir suspeitos, acusados ou vítimas que estejam em processo no TPI (Sapo Notícias, 13-07-2016). Os meus parabéns a Amine Saad por esta oportunidade de ocupar mais um lugar de destaque, que dignifica os quadros guineenses. Perante esta nomeação, tenho também outras três considerações a fazer.
Em primeiro lugar, o facto de as diplomacias da França e do Reino Unido serem diplomacias muito vigorosas, acaba muitas vezes por capturar as elites africanas, por vezes através de meios pouco positivos. Se olharmos para a realidade da Guiné-Bissau com base nesta linha do pensamento, podemos verificar que os intelectuais guineenses com mais visibilidade/influência pública, em termos académicos e de impacto mediático, estudaram, na sua maioria, em países francófonos e anglófonos. É possível que estas diplomacias tenham contribuído para a sua ascensão no país, na sub-região africana e nos organismos internacionais – e Amine Saad é um exemplo disto. E Portugal, o que tem feito pelos quadros lusófonos? Esta é uma questão que merece reflexão. Por mais que as forças externas tentem dividir-nos, deveríamos aproveitar o potencial de cada um para investir no desenvolvimento da Guiné-Bissau. Em segundo lugar, devemos questionar o que terá levado o TPI a convidar Amine Saad. Será que se prepara o julgamento de algum guineense por parte do TPI? Amine Saad, por ter sido Procurador-Geral da República da Guiné-Bissau duas vezes, pode estar na posse de informação relevante e comprometedora. Este é um caso que continuarei a acompanhar com toda a atenção.
Em terceiro lugar, não sou apologista ou defensor do TPI, assim como de outras ideias como o termo Estado Falhado, ou os Objectivos do Desenvolvimento do Milénio/Objectivos de Desenvolvimento Sustentável «ODM/ODS», que apresentam algumas características próximas dos princípios básicos da Conferência de Berlim, que não se aplicam ao Ocidente. Ou seja, parecem ser critérios específicos que se aplicam, preferencialmente aos países africanos e do Médio Oriente. O TPI seguramente não julgará e nem tão pouco condenará, por exemplo, os EUA e alguns países da União Europeia pela invasão ao Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria, etc. O nosso ponto de vista é partilhado pelo Presidente da República do Senegal, Macky Sall, que apontou críticas ao TPI, dizendo que apenas os líderes africanos são visados: «quando há uma obstinação em acusar apenas os africanos, há um problema porque dá a impressão que há uma justiça a duas velocidades. Não é normal que o TPI vise apenas os presidentes africanos. Não conheço outros casos oriundos da Europa. Não podemos dizer que não há crimes na Europa central ou ocidental. E depois, os Estados Unidos, a Rússia, a China não reconhecem o TPI. Pelo menos os africanos aceitaram, na sua maioria, fazer parte do TPI». O mesmo se passa em relação ao termo Estado Falhado: há alguns países da Europa (Espanha, Chipre, Grécia, Irlanda, Itália, Portugal, etc.) que perderam “supostamente” as suas soberanias (Política, Económica, etc.), mas dificilmente são referidos como Estados Falhados. É difícil defender a África e os africanos destes vocábulos, na medida em que, muitas vezes, são os próprios intelectuais africanos que os defendem (Euronews, 03-04-2014; Gentili, 1998; Obenga, 2003).
Perante estas ideias, caberá aos quadros africanos ponderar muito bem os convites que recebem para ocupar cargos onde poderão ser usados contra os seus irmãos africanos e contra os interesses de África. Por vezes só se apercebem das consequências depois de deixarem estes mesmos cargos, sendo já tarde demais para lavar a sua imagem.
Segunda parte. A cidade de Cacheu, no norte da Guiné-Bissau, tem um novo memorial dedicado à escravatura e tráfico negreiro, erguido num edifício em ruínas cujas obras de reabilitação foram custeadas pela União Europeia. O memorial foi apresentado como sendo um espaço que visa "valorizar a memória de uma realidade que marcou profundamente os países africanos e ainda hoje permanece com grande acuidade nas sociedades dilaceradas pelo tráfico negreiro" (Sapo Notícias, 08-07-2016). Elogio esta iniciativa, que vai ao encontro do que eu já defendi neste blogue, mas também na minha dissertação e no meu livro a propósito das estátuas derrubadas na Guiné-Bissau. Visto que a preservação da herança cultural com todas as memórias vivas através dos seus monumentos constitui o orgulho e respeito de um povo, os guineenses devem saber distinguir o passado, valorizar o presente e projectar um futuro melhor. Também é importante pressionar Portugal para a manutenção dos patrimónios culturais erguidos na Guiné-Bissau (Mendes, 2010: 97). Além disso, como se pode ouvir no vídeo, este memorial remete-nos para as origens do crioulo, tal como também já discuti num outro post (Mendes, 2010: 19-21).
Terceira parte. O ex-Primeiro Ministro «PM» e líder do PAIGC DSP alertou para a entrada no país de um "avião fantasma" com carga desconhecida e que foi recebido pelo chefe da casa civil da Presidência guineense (Sapo Notícias, 18-07-2016). Esta notícia não é surpresa para ninguém, porque, com o PAIGC, tudo é fantasma na Guiné-Bissau - submarinos, aviões, carros blindados, madeiras, areias, drogas, dinheiros, políticos, conselheiros, casas, esposas...etc. No entanto, não deixa de ser importante que estes acontecimentos sejam esclarecidos.
As pessoas esclarecidas não põem em causa os factos invocados por DSP: compreendem perfeitamente a situação e até os que não gostam dele, dar-lhe-ão razão nesta matéria. No entanto, essa não é a questão central. O povo está habituado a estas acusações constantes e já não presta atenção, porque está cansado de tantas polémicas dos políticos, e principalmente da governação do PAIGC. Assim, chega-se à conclusão de que todos mentem e escondem. Quando um político chega ao Poder (por exemplo, o PM Baciro Djá), diz que encontrou o país numa situação difícil, de rastos e cheio de buracos…assim, basta-lhe aproveitar para “alargar” ainda mais o “buraco”, retirando benefícios da sua situação privilegiada e deixando o país cada vez pior. O país está cheio de buracos: o PAIGC governou sempre como toupeiras (uma vez que vive de baixo do chão) que não param de fazer buracos. Um dia seremos engolidos pela terra
Caríssimos leitores, este post já vai longo, pelo que decidi deixar a parte mais “quente” para o próximo Domingo. Nessa altura, falarei das recentes declarações de DSP acerca do acórdão n.º 4/2016 do Supremo Tribunal de Justiça, da propriedade intelectual do programa «Terra Ranka» e das invasões de privacidade (a que chamarei os papéis do Panamá/Wikileaks guineenses). Tentarei demonstrar que é possível desvendar ligações e segredos de líderes políticos sem recorrer à invasão da sua privacidade. Para estarem preparados, aconselho-vos a lerem os posts “O prometido churrasco dos políticos guineenses: análise dos acontecimentos recentes na Guiné-Bissau,Mais uma cambalhota política na Guiné-Bissau:discursos de DSP e Jomav e a queda de Carlos Correia”, “Da tourada política à nomeação de Baciro Djá, passando pela barricada do Governo demitido”, e “Sobre as implicações do discurso de Jomav e a reacção de DSP”. Não percam!

Para mais informações, consultar o meu livro: Mendes, Livonildo Francisco (2015). Modelo Político Unificador – Novo Paradigma de Governação na Guiné-Bissau (pp. 176, 195). Lisboa: Chiado Editora.

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Quem diz a verdade na política guineense?

Meus saudosos leitores, o post de hoje é composto por três partes: na primeira parte analiso as contradições entre os discursos e acções do Primeiro-Ministro «PM» Baciro Djá; a segunda parte diz respeito à situação dos bancos, com confronto entre as afirmações do ex-PM Domingos Simões Pereira «DSP», o Fundo Monetário Internacional «FMI», o Governo, o Banco Central dos Estados da África Ocidental «BCEAO» e o Banco da África Ocidental «BAO»; na terceira parte, deixo avisos a DSP e ao Presidente da República «PR» José Mário Vaz «Jomav», face ao suposto triunvirato composto por Baciro Djá, Cipriano Cassamá e Botche Candé. Termino ainda com um aviso a Jomav e um elogio ao jogador Éder.

Primeira parte. O PM Baciro Djá diz que herdou um país de rastos, numa situação muito complicada (RTP África, 24-06-2016). Estes lamentos de Baciro Djá são surpreendentes – depois da grave crise política que se deu, deveria estar à espera destas dificuldades ou ainda pior.
Substituir um Governo supostamente credível perante os credores internacionais (caso dos Governos de DSP e de Carlos Correia), não pode ser uma tarefa fácil. O PM deve estar preparado para ser sujeito a diferentes tipos de condicionamentos e sanções, pelo que precisa de revelar a sua competência através de acções práticas e visíveis. Em relação às obras que estão a ser executadas, têm de ser alargadas a todo o país e não apenas aplicadas a casos pontuais, abrindo o debate às populações locais para ponderação dos futuros impactos.
Na mesma ocasião, Baciro Djá fez uma doação de cerca de dez toneladas de açúcar à comunidade muçulmana guineense para assinalar o fim do Ramadão (RTP África, 24-06-2016). É muito bom fazer ofertas neste tipo de celebrações, mas parece-me um pouco paradoxal que uma pessoa que se lamenta pela forma como “herdou” o país, faça ofertas desta dimensão. Até porque estas ofertas abrem desigualdades entre as diferentes comunidades religiosas – oferecer aos muçulmanos e não aos católicos ou animistas, por exemplo, pode criar uma tensão que fica latente e pode vir a explodir mais tarde. O melhor a fazer é criar um critério de justiça e equilíbrio entre todos os grupos. Espero que os governantes guineenses tenham isto em atenção.
Ainda, é de recordar que o PM aproveitou este momento para dizer também que o seu Governo não irá perseguir ninguém nem recorrer a vinganças (RTP África, 24-06-2016), tal como referi no post anterior.
Em contradição com estas afirmações do PM, a Liga Guineense dos Direitos Humanos «LGDH» acusa o Governo de Baciro Djá de censura, pela exoneração da direcção de informação da Rádio Nacional (RFI, 08-07-2016).
Parece que, na prática, o Governo está a perseguir aqueles que têm opiniões diferentes ou que dão espaço de palavra à oposição. Se Baciro Djá não deseja ser perseguido no futuro, deve governar de forma aberta e transparente, respeitando os pilares básicos da Democracia, e tendo consciência de que não ficará no Poder eternamente. Tudo o que fazemos tem um preço.
Segunda parte. O FMI decidiu suspender os empréstimos à Guiné-Bissau por causa do resgate à banca privada. Este órgão avisou que não vai dar mais dinheiro à Guiné-Bissau se as medidas acordadas no âmbito do programa de ajuda não forem aplicadas, nomeadamente no sector bancário e no Orçamento (RTP, 09-06-2016).
A respeito do resgate à banca, o ex-PM e líder do PAIGC, DSP, refutou as acusações de que o seu Governo teria criado um buraco injustificável nas contas públicas para saldar o crédito malparado dos bancos privados do país. DSP acusou o PR Jomav de ser um dos responsáveis pelo resgate a dois bancos privados da Guiné-Bissau realizado em 2015 no valor de 52 milhões de euros, para evitar o seu fecho (Notícias ao Minuto, 07-07-2016; RFI, 07-07-2016).
Ainda relativamente à situação dos bancos, João Aladje Fadia, director nacional do BCEAO, garante que os bancos comerciais em actividade na Guiné-Bissau estão sujeitos a uma supervisão rigorosa, visando a salvaguarda dos interesses dos depositantes. De acordo com a decisão do BCEAO, os bancos comerciais estão num processo de recapitalização que será concluído em Junho de 2017, em que o capital social será aumentado para 10 biliões de FCFA, o que contribuirá para solidez dos mesmos (O Democrata, 08-07-2016).
Na mesma linha de pensamento, Rómulo Pires, director-geral do BAO disse que são falsas as informações sobre o alegado “resgate financeiro” de que se tem falado, tendo assegurado que “não houve resgate nenhum”, uma vez que não houve injecção de dinheiro nos bancos por parte do Estado, que apenas cooperaram com o Governo no sentido de criar condições para que os bancos pudessem voltar a financiar a economia. De acordo com Rómulo Pires, “foram os bancos que financiaram o Estado e que com esse dinheiro comprou a carteira de crédito que estava em dificuldade, para que de facto se possa criar condições para nós [bancos] voltarmos a financiar. É tão simples quanto isso. Agora rescindir ou não o contrato, não traz dificuldade nenhuma a nenhum banco” (O Democrata, 08-07-2016).
Por aqui percebemos que DSP e o FMI estão em sintonia quanto à situação dos bancos. Pelo contrário, o Governo, o BCEAO e o BAO apresentam uma outra versão dos factos, que protege o PR e complica ainda mais a situação de DSP e dos seus apoiantes. Como dizia Tucídides, a verdadeira aliança consiste na união dos interesses das partes, ou seja, pode ser enquadrada, em parte, na teoria da balança do Poder, na qual a missão do estadista «PR» é identificar e dar primazia aos interesses nacionais de acordo com as circunstâncias (Tucídides, 2008: 20).
DSP, por mais que esteja a dizer a verdade, está encurralado por esta forte aliança, e dificilmente conseguirá contornar a força dos países da sub-região, devido aos seus interesses instalados na Guiné-Bissau. O que prevalece sempre é a versão dos mais poderosos e não necessariamente dos mais honestos, ou seja, são os que estão no Poder que escrevem a história. Volto a insistir na ideia de uma retirada estratégica, como tenho vindo a argumentar. Até porque, pelo menos, quatro questões estão ainda por responder por parte de DSP: porque razão o Governo de Carlos Correia protagonizou aquela barricada, apoiada pela sua ala do PAIGC? Quando é que DSP e Carlos Correia reconhecerão o Governo de Baciro Djá? Quando cumprirá o PAIGC as decisões do STJ sobre os 15 Deputados expulsos/retornados? Quem teria imparcialidade suficiente para fazer uma auditoria externa no caso dos bancos (e aos anteriores Governos)?
Tal como defendi anteriormente, este assunto poderá merecer um debate público dos prós & contras, nos órgãos de comunicação social, por parte de especialistas na matéria, para que os guineenses, tanto no país como na diáspora, possam estar bem informados. Esta é uma oportunidade para o Governo do PM Baciro Djá assumir uma postura de honestidade e transparência, dando oportunidade aos seus opositores para argumentar, e conquistando a confiança dos guineenses. 
Terceira parte. O PM Baciro Djá, o presidente da Assembleia Nacional Popular Cipriano Cassamá e o ministro de Estado e do Interior Botche Candé apareceram juntos em público no cumprimento da festa do Ramadão pela comunidade muçulmana da Guiné-Bissau (RTP África, 06-07-2016).
Perante isto, volto ao famoso Princípio da Objectividade da Ciência Política (Fernandes, 2010: 57), segundo o qual as coisas não são na realidade tal como nos aparecem, por isso se diz que "por dentro das coisas é que as coisas são".  A presença conjunta de Baciro Djá, Cipriano Cassamá e Botche Candé pode revelar um verdadeiro triunvirato (aliança entre três poderosos), que poderá pôr em causa tanto a sobrevivência política de DSP como de Jomav. Esta união de interesses destes três elementos pode significar que, após derrotarem o seu inimigo comum «DSP», poderão virar-se para um novo alvo que desejam descartar «Jomav». Deste modo, o seu Poder seria consolidado e teriam o caminho livre para a concretização dos seus objectivos. Creio que as imagens do vídeo anterior falam por si.
Conclusão. Para concluir, deixo um aviso e um elogio. O meu aviso vai para Jomav, ainda repisando nas ideias do post anterior: da próxima vez que quiser oferecer uma estatueta, que não seja uma mulher nua da região de Cacheu, como símbolo da mulher guineense. Há formas melhores e mais dignas de representar a mulher guineense tanto no país como no estrangeiro. Ainda sobre este tema, deixo ficar mais uma questão: será que esta estatueta de mulher de Cacheu não é também mais uma provocação a DSP, uma vez que é originário desta cidade (apesar de ter nascido em Farim)? Cuidado [Jomav] com as segundas e terceiras interpretações, porque assim poderá perder muitos apoios, nomeadamente dos filhos e mulheres de Cacheu.
Finalmente, o meu elogio vai para a selecção portuguesa de futebol, em particular para o luso-guineense Éder, que marcou o golo mais importante da história do futebol português. Desejo-lhe as maiores felicidades no seu percurso futebolístico. Recomendo que acompanhem as entrevistas que deu aos vários meios de comunicação portugueses, nomeadamente, a RTP 1, a SIC e a TVI.
Meus saudosos leitores, espero que tenham gostado deste post e conto com os vossos comentários e partilhas. No próximo post, falarei da ida de Amine Saad para o Tribunal Penal Internacional e do Memorial da escravatura em Cacheu – dois temas muito presentes no meu livro.
 Para mais informações, consultar o meu livro: Mendes, Livonildo Francisco (2015). Modelo Político Unificador – Novo Paradigma de Governação na Guiné-Bissau. Lisboa: Chiado Editora.

domingo, 3 de julho de 2016

Regresso às notícias da Guiné-Bissau: o confronto entre Manelinho e Inum, a oferta de Jomav e o silêncio de DSP

Admiráveis leitores, como prometido regresso aos temas da Guiné-Bissau, num post dividido em três partes: na primeira parte analiso o conflito na Federação de Futebol da Guiné-Bissau «FFGB» entre “Manelinho” e Inum Embaló; na segunda parte, interpreto a presumível gaffe (deslize) do Presidente da República «PR» José Mário Vaz «Jomav» na oferta de uma estatueta a Ramalho Eanes; e na terceira parte analiso a estratégia de silêncio do ex-Primeiro-Ministro «PM» Domingos Simões Pereira «DSP» face à retoma dos problemas no Parlamento guineense.
Primeira parte. Inum Embaló, um dos cinco candidatos à presidência da Federação de Futebol da Guiné-Bissau «FFGB» impugnou as eleições realizadas a 18 de junho, alegando fraude. Segundo Inum Embaló, vice-Presidente da Direcção cessante, a reeleição de Manuel Nascimento Lopes «Manelinho» "é ilegal e fraudulenta, porque o vencedor apresentou documentos falsos e contou com o apoio expresso do Poder político, nomeadamente o "favorecimento da presidência da República", através de meios logísticos, financeiros e com elementos de segurança. Acusou ainda o Presidente da FFGB de não ter apresentado as contas da sua gestão durante dois anos e ainda de ter contraído um empréstimo num banco comercial no valor de cerca de 600 milhões de francos CFA (915 mil euros). Embaló diz ter apresentado todos os factos junto da Comissão Eleitoral, Polícia Judiciária, FIFA e Confederação Africana de Futebol «CAF», mas adiantou haver indícios de "pressão política" sobre a polícia guineense para que o caso seja abafado (Sapo Notícias, 28-06-2016; RTP África, 28-06-2016).
Perante estas acusações, Manelinho, o reeleito Presidente da FFGB, reagiu, afirmando que até ao momento não foi notificado da existência de uma impugnação contra a sua reeleição. Garantiu que vai erradicar Inum Embaló da FFGB, porque considera que Inum é um “vírus” que deve ser combatido e banido do seio da FFGB. Neste sentido, reafirma que, durante a sua presidência, o candidato derrotado nunca mais pisará o chão da Federação. Manelinho considera que enquanto Deputado da Nação, merece respeito e perante a escandalosa falta de respeito e tentativa de denegrir a sua imagem, vai fazer de tudo para que o cidadão Inum Embaló seja detido. Também o vice-Presidente da FFGB, Joãozinho Mendes, negou todas as acusações de Inum Embaló, convidando-o a deixar os membros da FFGB trabalhar. Quanto à alegada interferência do PR Jomav, no processo eleitoral, o vice-Presidente da FFGB afirmou que o Chefe de Estado apenas pagou as despesas dos jogadores da selecção no momento em que "não havia Governo" no país (Sapo Notícias, 28-06-2016; RTP África, 28/29-06-2016).
Estes conflitos no seio da FFGB levam-me a recordar as declarações recentes do PM Baciro Djá. O PM afirma que o seu Governo não irá perseguir ninguém nem recorrer a vinganças, devendo recorrer-se às entidades competentes para resolver os problemas (RTP África, 24-06-2016). 
      Tanto Baciro Djá como Manelinho Lopes fazem parte dos 15 Deputados expulsos/retornados e da ala pró-Jomav. Agora, Manelinho Lopes invoca o seu estatuto de Deputado e a sua total autoridade para “castigaro seu opositor Inum Embaló. Isto leva-me a levantar várias hipóteses:
Em primeiro lugar, talvez Inum Embaló tenha razão nos factos que invocou, de que Manelinho conta com o Poder político e que a justiça não é independente. Sendo Manelinho Deputado da Nação, empresário, etc., e Presidente da FFGB, deveria resolver o seu problema no foro da FFGB, sem usar a sua vantagem enquanto Deputado para mandar deter uma pessoa que o acusa de forma legítima (recorrendo às autoridades). Manelinho Lopes deveria recorrer à Justiça, às entidades competentes, tal como fizeram os 15 Deputados, acabando por ganhar a causa. A falta de resposta por parte da Justiça e do Ministério do Interior e o apoio de Jomav levantam sérias dúvidas sobre a isenção de Manelinho Lopes.
Em segundo lugar, esta atitude do Presidente da FFGB revela que, afinal, o ex-PM DSP talvez tivesse razão ao expulsar estes 15 Deputados, impedindo-os de regressar ao Parlamento. Se Manelinho não admite oposição interna na FFGB, então DSP também podia recusar qualquer oposição dentro do PAIGC e no Parlamento. Além disso, DSP não ameaçou deter estes 15 Deputados (ao contrário do que fez Manelinho), embora pudesse tê-lo feito, para fazer valer os seus Poderes enquanto PM.
Em terceiro lugar, a atitude de Manelinho dá razão a Conduto de Pina, que foi duramente criticado por ter ameaçado cortar o financiamento à FFGB sob o pretexto de que Manelinho fazia despesas exorbitantes. As palavras de Inum Embaló não são novas, mas repisam naquilo que Conduto de Pina já afirmava sobre Manelinho Lopes. Sendo assim, porque Manelinho não reagiu da mesma forma perante as acusações de Conduto de Pina? Isto é paradoxal: perante duas acusações iguais, Manelinho tem duas posições diferentes – perante Conduto de Pina, apresentou-se como vítima, perante Inum Embaló, mostra-se super-poderoso. Mais um motivo para acreditar que o Poder político fala mais alto – se Manelinho não tivesse apoio político, teria agido da mesma forma como agiu com Conduto de Pina.
Em quarto lugar, posso supor que, se Manelinho Lopes pretende usar o seu Poder como Deputado para fazer valer os seus direitos enquanto Presidente da FFGB, seguramente utilizará esse mesmo estatuto para fazer valer os seus direitos enquanto empresário, dos seus amigos, familiares, funcionários, etc.
Tenho defendido a despartidarização e despolitização do sector privado e da administração pública guineenses, ou seja, é necessário terminar com acumulações de cargos. A este propósito, recordo a classificação de Fernandes (2010: 107-118), que distingue entre funções políticas e funções técnicas. As funções políticas incluem a função governativa e a função legislativa. As funções técnicas incluem a função administrativa e a função jurisdicional (para mais informações, ver o meu livro, páginas 298-302).
Finalmente, se Manelinho utilizar o seu estatuto de Deputado para prejudicar Inum Embaló, deve preparar-se para o pior, porque, quando fazemos justiça com as próprias mãos, ficamos vulneráveis para que façam o mesmo connosco. Ou seja, de forma mais simples, fazer mal a alguém, abre caminho para que nos façam mal a nós. Isto tem sido constante ao longo da história da Guiné-Bissau, pelo que a lição já deveria ter sido aprendida.
Recordo a Manelinho Lopes que são os críticos que devem ser encarados como os seus verdadeiros amigos e não como inimigos. Tal como a dor funciona no corpo humano, é assim que a crítica nos alerta que algo de errado se passa connosco. Tudo isso porque é na base destas críticas que ele pode esforçar-se para melhorar o que está mal. Porque é precisamente quando sabemos que os outros não querem o nosso bem, que devemos esforçar-nos ainda mais para superar os obstáculos (Mendes, 2015: 319).
Segunda parte. O PR Jomav está em visita privada a Portugal por duas semanas, tendo sido convidado para a cerimónia de condecoração do ex-PR português Ramalho Eanes com o Grande Colar da Ordem do Infante D. Henrique. Jomav afirmou nessa ocasião que vê António Ramalho Eanes como uma “pessoa especial”, com quem se aconselha sempre que vem a Portugal. "Desde que ganhei as eleições, a minha preocupação realmente é estar muito próximo do Presidente Ramalho Eanes para poder aproveitar a experiência dele para o meu dia-a-dia enquanto PR”. Jomav aproveitou a ocasião para oferecer a Ramalho Eanes uma estatueta de madeira, simbolizando a mulher guineense: "mulher trabalhadora e sobretudo uma mulher da região de Cacheu, onde esteve quando era militar”, durante o conflito colonial em 1961/75. Nesta cerimónia estiveram também presentes antigos PR de Portugal e o PR de Cabo Verde Jorge Carlos Fonseca (O Democrata, 27-06-2016; RTP África, 27-06-2016; Sapo Notícias, 27-06-2016).
A presença simultânea de Jomav e do PR de Cabo Verde nesta cerimónia, e não de outros representantes dos PALOP/CPLP, pode ser uma lição indirecta, para que Jomav siga o exemplo de Cabo Verde no que diz respeito ao cumprimento dos mandatos. Sendo dois países unidos na luta contra o Portugal colonial, se calhar também deveriam estar unidos na Democracia, para partilhar os ideais da estabilidade política e do desenvolvimento. Jomav deve decidir se prefere governar ao estilo dos PR de Cabo Verde (cumprindo os mandatos como o estabelecido na lei) ou ao estilo de Ramalho Eanes, que, em dez anos como PR (em dois mandatos seguidos de 1976 a 1986) coabitou com dez Governos (Novais, 2010: 461-462). Já avisei Jomav para não ser igual ao ex-PR Cavaco Silva, mas acabou por ser, coabitando já com quatro Governos. Desta vez, aconselho-o a não seguir o caminho de Ramalho Eanes, porque estamos fartos na Guiné-Bissau, desta “dança de cadeiras” – que ele não venha a coabitar com dez Governos, sem que nenhum cumpra o seu mandato.
Passo agora para a análise do gesto de oferta de Jomav a Ramalho Eanes, que pode ter muitas interpretações, atendendo ao Princípio da Objectividade da Ciência Política (Fernandes, 2010: 57), segundo o qual as coisas não são na realidade tal como nos aparecem, por isso se diz que "por dentro das coisas é que as coisas são". Por um lado, a oferta de uma estatueta de mulher de Cacheu, pode ser considerada uma grande gaffe, porque pode ser uma recordação dos boatos de que portugueses teriam tido filhos com mulheres guineenses, durante a sua permanência na Guiné. Isto pode ser mal-interpretado por um sector mais conservador da sociedade portuguesa e levar ao questionamento dos opositores de Jomav: por que razão não ofereceu a estatueta em privado? Não estará apenas a procurar protagonismo? Não seria melhor convidar Ramalho Eanes para ir à Guiné-Bissau, oferecendo-lhe algumas recordações lá? Faz sentido fazer uma oferta que particulariza a região de Cacheu e não representa o Estado da Guiné-Bissau? Jomav estará a favorecer a região de onde é proveniente? Também podemos especular que pode ter sido o próprio Ramalho Eanes que sugeriu a Jomav que trouxesse a estatueta, até porque Otelo Saraiva, também presente, iria gostar.
A oferta de uma estatueta feminina, levanta também a questão de que Jomav poderá estar a servir de “porta-voz” das mulheres/viúvas e filhos deixados para trás pelos soldados portugueses. Numa altura em que têm surgido várias notícias sobre filhos que procuram os seus pais portugueses, e também sobre a criação da Associação de viúvas e filhos de ex-combatentes guineenses que lutaram por Portugal na Guerra Colonial na Guiné-Bissau, esta atitude de Jomav pode levantar dúvidas (Esquerda.net, 01-03-2016; Público, 11-07-2013; Público, 01-11-2013; Público, 17-06-2016).
Social e culturalmente, Jomav poderia ter como objectivo recordar saudavelmente a Ramalho Eanes a simpatia do povo guineense e da região de Cacheu em particular, até porque o antigo PR português visitou a Guiné-Bissau durante o seu mandato (1979) no entanto, o PR não pode deixar de ponderar seriamente cada um dos seus actos e as suas implicações. Além disso, deixo um conselho muito importante a Jomav: à semelhança do que habitualmente fazem os dirigentes caboverdianos, é imprescindível aproveitar a presença em Portugal (ainda mais durante um período tão longo) para passar algumas horas com a comunidade guineense. Mesmo sabendo que a diáspora apoia maioritariamente DSP, Jomav deve seguir o conselho de Cícero, de que “não se deve recear a aproximação àqueles que se nos opõem” (Cícero, 2013: 15). Jomav deve usar a técnica do “afecto”, do PR português Marcelo Rebelo de Sousa, para que os guineenses se sintam valorizados e reconhecidos dentro e fora do país.
Terceira parte. O Parlamento da Guiné-Bissau voltou a reunir-se hoje em sessão plenária, mas esta terminou cerca de uma hora depois, sem que se tenham definido os lugares para os Deputados dissidentes do PAIGC. Os 15 Deputados expulsos/retornados compareceram no hemiciclo, tendo tomado assento, enquanto os Deputados que os iam substituir ficaram nas galerias do Parlamento. O PAIGC voltou a exigir, na reunião preparatória da sessão plenária, uma resposta ao seu requerimento sobre que lugares irão ocupar os Deputados que perderam a militância no partido. A sessão tinha como único ponto a discussão do orçamento de funcionamento do próprio Parlamento, mas o líder do Parlamento, Cipriano Cassamá, apoiado pelas bancadas parlamentares, entendeu que devia ser suspensa, uma vez que o Governo ainda não apresentou o seu programa de acção e o Orçamento Geral do Estado para 2016 (O Democrata,30-06-2016).
Neste momento, DSP está já a colher os frutos do seu silêncio, tal como eu recomendei, à semelhança do que fez o ex-PM e ex-Presidente do PAIGC Carlos Domingos Gomes Júnior «Cadogo Jr.». Se for resolvido o problema dos 15 Deputados expulsos/retornados, DSP poderá recuperar a sua credibilidade através de comentários regulares na comunicação social (de preferência rádio e televisão), para não ser esquecido. Contudo, deverá ter sempre cautela, para não ser silenciado como foi o ex-PM José Sócrates em Portugal.
Espero que os meus conselhos possam ajudar a compreender estes acontecimentos recentes e cheguem aos seus principais destinatários. Lembro os leitores que, apesar de, por vezes fazer duras críticas, inclusive a amigos ou pessoas próximas, sigo o caminho de Aristóteles que, quando questionado sobre a sua ruptura com Platão disse “Sou amigo de Platão, mas ainda mais da verdade” (Aristóteles, 2000). Da mesma forma sou um grande amigo de infância dos irmãos de Manelinho Lopes (em particular, Nando e Chico, meus vizinhos em Farim), mas parece-me mais útil ser honesto e sincero, apresentando críticas que contribuam para a sua evolução, do que tentar apenas agradar. No próximo post vou desmistificar as lamentações de Baciro Djá e analisar os condicionamentos do Fundo Monetário Internacional.
Para mais informações, consultar o meu livro: Mendes, Livonildo Francisco (2015). Modelo Político Unificador – Novo Paradigma de Governação naGuiné-Bissau (pp. 186-187, 298-302, 319). Lisboa: Chiado Editora.