Estimados leitores, neste post
aproveito as declarações de Carmen Pereira
(a quem desejo rápidas melhoras) para reflectir sobre o papel dos ex-combatentes na sociedade
guineense, e sobre a necessidade de criar
condições para que tenham um enquadramento
claro e justo. Aproveito para deixar em aberto uma questão, para ver respondida nos próximos tempos: será que o regresso à Guiné-Bissau do ex-Presidente da República interino (pela segunda vez), Raimundo Pereira, indica que ele poderá vir a liderar um futuro Governo de Iniciativa Presidencial (GIP)?
A ex-combatente guineense e dirigente
histórica do PAIGC afirmou ter sido notificada
pelo Ministério Público para prestar
declarações sobre a utilização de fundos
do Estado para tratamentos médicos.
Em causa estarão mais de 2 milhões
de FCFA (3000 euros). Carmen Pereira, de 79 anos, considerou esta situação como
provocatória, encarando-a como uma falta de respeito por alguém que dedicou a sua juventude à luta pela liberdade. Para além de
Carmen Pereira, terão sido notificados pelo mesmo motivo alguns membros do Governo do PAIGC. Face a
estes acontecimentos, o Procurador-Geral
da República «PGR», Sedja Man,
começou por afirmar que não tinha
conhecimento destas notificações, rejeitando o termo "provocação",
e sublinhando que "ninguém está
acima da lei". Posteriormente, a Procuradoria-Geral da República
emitiu um comunicado onde rejeita ter notificado a Combatente de
Liberdade de Pátria, Carmen Pereira por alegada suspeição de crime económico, tendo esta notificação sido feita
pelo Tribunal Regional de Bissau (ANG,
21-03-2016; RTP África, 18-03-2016).
Importa relembrar, antes de
mais, que o Movimento de Libertação
Nacional se dividiu em duas partes: uma parte que corresponde ao braço político (PAIGC) e a outra parte é o braço
armado (FAGB «Forças Armadas da
Guiné-Bissau»). Esta divisão resultou das diferenças
de habilitações e estatuto social – os que aparentavam ter mais habilitações
foram os que ficaram, de uma forma geral, no PAIGC. Dentro dos ex-combatentes ou veteranos
de guerra que ficaram dentro do
PAIGC, acabaram por criar-se duas alas opostas
que hoje apoiam o Presidente da
República «PR» Jomav (José Mário
Vaz) ou o ex-Primeiro-Ministro «ex-PM»
DSP (Domingos Simões Pereira).
Tendo em conta estas divisões,
Carmen Pereira é uma das
ex-combatentes que se enquadra na ala
pró-DSP. Uma vez que o PGR é uma
figura cuja nomeação e exoneração
depende da vontade política do PR,
presume-se que Sedja Man seja da ala pró-Jomav.
Neste sentido, podemos ver como os
conflitos entre Jomav e DSP estão a degenerar
e a generalizar-se para todos os sectores da sociedade
guineense, assumindo a forma de ajustes
de contas mascarados.
Perante estes factos, penso
que todos estaremos de acordo quanto às justificações
de Carmen Pereira e a sua coragem ao
dar a cara deve ser valorizada. O seu estado de saúde inspira cuidados e merece a
devida atenção[1].
O próprio PM, Carlos Correia, também ex-combatente, exerce este cargo pela
quarta vez, o que pode motivar os
restantes veteranos a reclamar algo para si (sem falar dos jovens do partido, que ganham fortunas difíceis de justificar). Contudo, a forma como Carmen Pereira se
expressou não se coaduna com a
própria filosofia que é utilizada
para justificar a luta armada contra
o colonialismo português. Se os ex-combatentes da pátria lutaram pela
justiça e pela liberdade, devem também olhar para estes actos de
notificação como sinais de justiça e
liberdade, tendo em conta que a lei deve
ser aplicada a todos os cidadãos[2]. E se para Carmen Pereira 2
milhões de FCFA não são nada, o que
dizem todos os outros ex-combatentes? Será que todos os outros ex-combatentes beneficiam desta quantia? Ou será que só alguns, os da ala política do PAIGC têm
direito a estas compensações? Será que aqueles que não têm acesso a estes
apoios não se sentem revoltados[3]? Será que a Guiné-Bissau tem capacidade para suportar este valor
para cada um dos ex-combatentes e suas famílias? Tenho sérias dúvidas que a maioria dos ex-combatentes (em especial
nas forças armadas) receba este tipo de apoios.
Para concluir, proponho
algumas medidas urgentes que deveriam
ser tomadas para dar um enquadramento
mais claro e justo aos ex-combatentes da luta armada. Em primeiro lugar,
deveria haver um estatuto claro para
definir quem é um antigo combatente e
quais são as suas regalias, prevendo
também que tipo de apoios são devidos aos
familiares de ex-combatentes tombados na batalha, suspensos, falecidos,
executados, etc. Em segundo lugar, é preciso criar condições decentes para aqueles que dedicaram parte sua vida
à luta armada, porque é aqui que começa
a verdadeira reconciliação. Não podemos esquecer, porém, que todos os guineenses merecem viver em igualdade
de condições e oportunidades, exercendo a sua cidadania tendo em vista o Bem
Comum (de todos e não apenas de alguns), já que a Guiné-Bissau não é uma propriedade privada dos graúdos. Para tal, precisamos de verdadeiros governantes, que reúnam requisitos básicos de Liderança, Poder e Autoridade/Carisma.
Para mais informações, consultar o meu livro:
Mendes, Livonildo Francisco (2015). Modelo Político Unificador – Novo Paradigma
de Governação na Guiné-Bissau (pp. 173-177, 263, 379-383, 452, 466, 478, 544).
Lisboa: Chiado Editora.
[1] Sobre este assunto, há uma questão
importante a ressaltar. Em vez de gastar fortunas em tratamentos no
estrangeiro, seria talvez mais útil investir esse dinheiro na construção de
hospitais onde os guineenses possam ser tratados quando estiverem doentes, -
isto serve também para a valorização dos quadros técnicos de saúde da
Guiné-Bissau e para a criação de postos de trabalho em diversas áreas. Nelson Mandela
é um exemplo paradigmático disto: fez todos os seus tratamentos no seu país,
usufruindo dos investimentos feitos internamente, ao invés de viajar para o
exterior como fazem muitos líderes africanos. Aqui reside a essência da mudança
de mentalidades (Mendes, 2010: 92).
[2] Neste caso, não podemos deixar que se
aplique a lógica da “teia de aranha”, onde só os mais pequenos/fracos são
apanhados e os maiores/forte escapam, porque a teia dilata. Apesar de isto ser
muito difícil, por causa da politização e partidarização da justiça guineense
pelo partido-Estado PAIGC.
[3] Seria importante perceber o que é que o
Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas «CEMGFA», Biaguê Nan Tan, tem
a dizer sobre este assunto. Uma vez que se pronunciou sobre a possibilidade de um militar se associar a um Golpe de Estado, ameaçando de morte os possíveis
dissidentes, deveria olhar também para este caso como uma possível ameaça.