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sexta-feira, 25 de março de 2016

Sobre a notificação da ex-combatente Carmen Pereira pelo Ministério Público

Estimados leitores, neste post aproveito as declarações de Carmen Pereira (a quem desejo rápidas melhoras) para reflectir sobre o papel dos ex-combatentes na sociedade guineense, e sobre a necessidade de criar condições para que tenham um enquadramento claro e justo. Aproveito para deixar em aberto uma questão, para ver respondida nos próximos tempos: será que o regresso à Guiné-Bissau do ex-Presidente da República interino (pela segunda vez), Raimundo Pereira, indica que ele poderá  vir a liderar um futuro Governo de Iniciativa Presidencial (GIP)?

A ex-combatente guineense e dirigente histórica do PAIGC afirmou ter sido notificada pelo Ministério Público para prestar declarações sobre a utilização de fundos do Estado para tratamentos médicos. Em causa estarão mais de 2 milhões de FCFA (3000 euros). Carmen Pereira, de 79 anos, considerou esta situação como provocatória, encarando-a como uma falta de respeito por alguém que dedicou a sua juventude à luta pela liberdade. Para além de Carmen Pereira, terão sido notificados pelo mesmo motivo alguns membros do Governo do PAIGC. Face a estes acontecimentos, o Procurador-Geral da República «PGR», Sedja Man, começou por afirmar que não tinha conhecimento destas notificações, rejeitando o termo "provocação", e sublinhando que "ninguém está acima da lei". Posteriormente, a Procuradoria-Geral da República emitiu um comunicado onde rejeita ter notificado a Combatente de Liberdade de Pátria, Carmen Pereira por alegada suspeição de crime económico, tendo esta notificação sido feita pelo Tribunal Regional de Bissau (ANG, 21-03-2016; RTP África, 18-03-2016).


Importa relembrar, antes de mais, que o Movimento de Libertação Nacional se dividiu em duas partes: uma parte que corresponde ao braço político (PAIGC) e a outra parte é o braço armado (FAGB «Forças Armadas da Guiné-Bissau»). Esta divisão resultou das diferenças de habilitações e estatuto social – os que aparentavam ter mais habilitações foram os que ficaram, de uma forma geral, no PAIGC. Dentro dos ex-combatentes ou veteranos de guerra que ficaram dentro do PAIGC, acabaram por criar-se duas alas opostas que hoje apoiam o Presidente da República «PR» Jomav (José Mário Vaz) ou o ex-Primeiro-Ministro «ex-PM» DSP (Domingos Simões Pereira).
Tendo em conta estas divisões, Carmen Pereira é uma das ex-combatentes que se enquadra na ala pró-DSP. Uma vez que o PGR é uma figura cuja nomeação e exoneração depende da vontade política do PR, presume-se que Sedja Man seja da ala pró-Jomav. Neste sentido, podemos ver como os conflitos entre Jomav e DSP estão a degenerar e a generalizar-se para todos os sectores da sociedade guineense, assumindo a forma de ajustes de contas mascarados.
Perante estes factos, penso que todos estaremos de acordo quanto às justificações de Carmen Pereira e a sua coragem ao dar a cara deve ser valorizada. O seu estado de saúde inspira cuidados e merece a devida atenção[1]. O próprio PM, Carlos Correia, também ex-combatente, exerce este cargo pela quarta vez, o que pode motivar os restantes veteranos a reclamar algo para si (sem falar dos jovens do partido, que ganham fortunas difíceis de justificar). Contudo, a forma como Carmen Pereira se expressou não se coaduna com a própria filosofia que é utilizada para justificar a luta armada contra o colonialismo português. Se os ex-combatentes da pátria lutaram pela justiça e pela liberdade, devem também olhar para estes actos de notificação como sinais de justiça e liberdade, tendo em conta que a lei deve ser aplicada a todos os cidadãos[2]. E se para Carmen Pereira 2 milhões de FCFA não são nada, o que dizem todos os outros ex-combatentes? Será que todos os outros ex-combatentes beneficiam desta quantia? Ou será que só alguns, os da ala política do PAIGC têm direito a estas compensações? Será que aqueles que não têm acesso a estes apoios não se sentem revoltados[3]? Será que a Guiné-Bissau tem capacidade para suportar este valor para cada um dos ex-combatentes e suas famílias? Tenho sérias dúvidas que a maioria dos ex-combatentes (em especial nas forças armadas) receba este tipo de apoios.
Para concluir, proponho algumas medidas urgentes que deveriam ser tomadas para dar um enquadramento mais claro e justo aos ex-combatentes da luta armada. Em primeiro lugar, deveria haver um estatuto claro para definir quem é um antigo combatente e quais são as suas regalias, prevendo também que tipo de apoios são devidos aos familiares de ex-combatentes tombados na batalha, suspensos, falecidos, executados, etc. Em segundo lugar, é preciso criar condições decentes para aqueles que dedicaram parte sua vida à luta armada, porque é aqui que começa a verdadeira reconciliação. Não podemos esquecer, porém, que todos os guineenses merecem viver em igualdade de condições e oportunidades, exercendo a sua cidadania tendo em vista o Bem Comum (de todos e não apenas de alguns), já que a Guiné-Bissau não é uma propriedade privada dos graúdos. Para tal, precisamos de verdadeiros governantes, que reúnam requisitos básicos de Liderança, Poder e Autoridade/Carisma.
Para mais informações, consultar o meu livro: Mendes, Livonildo Francisco (2015). Modelo Político Unificador – Novo Paradigma de Governação na Guiné-Bissau (pp. 173-177, 263, 379-383, 452, 466, 478, 544). Lisboa: Chiado Editora.


[1] Sobre este assunto, há uma questão importante a ressaltar. Em vez de gastar fortunas em tratamentos no estrangeiro, seria talvez mais útil investir esse dinheiro na construção de hospitais onde os guineenses possam ser tratados quando estiverem doentes, - isto serve também para a valorização dos quadros técnicos de saúde da Guiné-Bissau e para a criação de postos de trabalho em diversas áreas. Nelson Mandela é um exemplo paradigmático disto: fez todos os seus tratamentos no seu país, usufruindo dos investimentos feitos internamente, ao invés de viajar para o exterior como fazem muitos líderes africanos. Aqui reside a essência da mudança de mentalidades (Mendes, 2010: 92).
[2] Neste caso, não podemos deixar que se aplique a lógica da “teia de aranha”, onde só os mais pequenos/fracos são apanhados e os maiores/forte escapam, porque a teia dilata. Apesar de isto ser muito difícil, por causa da politização e partidarização da justiça guineense pelo partido-Estado PAIGC.
[3] Seria importante perceber o que é que o Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas «CEMGFA», Biaguê Nan Tan, tem a dizer sobre este assunto. Uma vez que se pronunciou sobre a possibilidade de um militar se associar a um Golpe de Estado, ameaçando de morte os possíveis dissidentes, deveria olhar também para este caso como uma possível ameaça.



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