Jorge Miranda, pai da Constituição portuguesa (e, por inerência, um dos inspiradores das Constituições dos PALOP), afirmou, há cerca de duas semanas, que o Presidente da República da Guiné-Bissau estaria a criar uma crise artificial no país, dificultando a paz e a estabilidade. E penso que, até certo ponto, esta posição pode ser compreensível.
No entanto, se olharmos para situação actual portuguesa, devemos questionar-nos: será que o Presidente da República Portuguesa não está também a criar uma crise artificial para o país? Indigitar Pedro Passos Coelho para formar Governo, sabendo de antemão que o Parlamento vai travar o seu avanço (como ficou provado pela escolha de Ferro Rodrigues como Presidente da Assembleia da República pela "maioria de esquerda"), não é também dificultar a paz e a estabilidade em Portugal?
São reflexões destas que fazem falta nos comentários dos diversos quadrantes que discutem a política guineense. Porque o que está a acontecer hoje em Portugal, poderá um dia acontecer na Guiné-Bissau (e nos outros PALOP), tendo em conta a mesma correlação que existe entre o sistema eleitoral, o sistema de partidos políticos e o sistema político de governo, no regime político democrático.
In Livonildo Francisco Mendes, Modelo Político Unificador: Novo Paradigma de Governação na Guiné-Bissau, 2015: 405 (adaptado de Fernandes , 2010: 229)
Subscrevo. Enquanto atenta à defendida consolidação do Estado de Direito no meu país, através de mecanismos democráticos (sistema eleitoral, sistema de partidos políticos e o sistema político de governo). O que nos espera? Os tais do cut, copy and past, do ocidentalismo, mas na terra dos irãs e mouros! Se é que me faço entender?
ResponderEliminarCaro «PUSD», muito obrigado pelo comentário. Vou focar-me em duas questões principais: a primeira diz respeito à questão da importação dos modelos ocidentais; a segunda é referente à questão das nossas tradições (divido a minha resposta em dois comentários, por causa da limitação do número de caracteres).
EliminarSobre a questão da importação dos modelos ocidentais, o intelectual guineense, Professor Doutor Kafft Kosta defende a tese (também válida para tradição) de que «(…) um sistema político deve ser sempre adaptado à realidade em que se insere, não fazendo sentido exigir para a Guiné-Bissau um modelo político de inspiração tradicionalmente ocidental (portuguesa), fundado numa sociedade pouco ou nada pluralista como é a sociedade portuguesa» (Kosta, 2004: 62-79; 2007: 10, 242-248, 275-276; Mendes, 2010: 80; 2015: 205-206). Considero que a sua posição é sensata, uma vez que nenhum modelo político deve ser transferido de um contexto para outro de qualquer maneira. No entanto, os modelos políticos podem ser ajustados e trabalhados, de forma a satisfazerem as necessidades de cada contexto. Segundo Popper «deveríamos tentar apurar quem tem as melhores instituições. E deveríamos aprender com elas. Ou seja, devemos olhar para os modelos que existem e retirar o melhor possível deles para propor alternativas viáveis» (Mendes, 2010: 80-81; 2015: 274, 489-490; Plutarco, 2009: 30-31; Popper, 2006: 22; 2009: 88; Santos, 2003: 19).
Em relação à segunda questão, referente às nossas tradições guineenses/africanas, gostaria de chamar a atenção para ter em conta os aspectos positivos e negativos.
Quanto aos aspectos positivos, por exemplo, uma das questões importantes da tradição guineense/africana está no facto de ter, indirectamente, fornecido à ciência moderna “ocidental” pistas e intuições para as suas descobertas. Embora Kafft Kosta não tenha referido esta questão explicitamente, considero que os valores associados à matrilinhagem como critério da herança do reinado constituem pistas primitivas para as descobertas efectuadas sobre o ADN. Quem herdava do régulo era o filho da sua irmã, porque, ao contrário dos seus filhos (que poderiam não ser seus, caso as suas mulheres fossem infiéis), ele tinha a certeza que os seus sobrinhos por parte da sua irmã eram realmente do seu sangue. Ou seja, as tradições antigas, apesar de aparentemente atrasadas, revelavam algumas intuições que só viriam a ser confirmadas mais tarde pela ciência. Aparentemente poderá parecer que este sistema de matrilinhagem esconde uma atitude de valorização da mulher (neste caso, a irmã do régulo). No entanto, apenas demonstra que a tradição valoriza os laços de sangue, os únicos vínculos fortes o suficiente para escaparem à desconfiança masculina (Kosta, 2004; 2007; Mendes, 2015: 272-273). Karl Popper legitima este ponto de vista quando apresenta esta mesma ideia nos seus livros «O Mito do Contexto» e «Conjecturas & Refutações», ao referir que os mitos pré-científicos podem conter importantes antecipações de teorias científicas que poderão só se desenvolver muito mais tarde (Popper, 2006: 62; 2009: 69-70, 250).
Outro aspecto positivo diz respeito aos anciãos guineenses/africanos – “homens grandes” – que são aquelas pessoas a quem a longevidade confere o saber proveniente da experiência. Por isso a morte de um velho em África é conotada com a imagem de uma grande biblioteca a arder. Ou seja, é todo um conhecimento irrepetível que se perde. Ainda hoje, o saber que provém de tradições orais, transmitidas de gerações para gerações constitui uma das formas mais importantes de conhecimento (Mendes, 1992: 69; Mendes, 2015: 207).
(continuação)
EliminarQuanto aos aspectos negativos, estes abundam. Por exemplo, sabendo que os régulos/chefes tradicionais na Guiné-Bissau são homens, qual é tratamento que devemos dar às mulheres guineenses face à política de igualdade sexual que se defende actualmente? Para que o modelo tradicional possa ser eficaz, será preciso limar os picos negativos das tradições da Guiné-Bissau/África, o que vai exigir uma profunda mudança de mentalidades em coerência com a mudança da retórica de discursos e a mudança de procedimentos práticos exemplares, aspectos que estão bem trabalhados no meu livro (Mendes, 2015: 245, 279-280). Os responsáveis políticos, intelectuais e os cidadãos guineenses/africanos não devem recusar o regime político democrático por razões inerentes à sua própria cultura, dado que não podem invocar o pretexto das tradições da Guiné-Bissau/África e das características culturais desse povo para se absterem de institucionalizar estruturas políticas participadas/representadas e democráticas, abertas a uma diversidade de opiniões e de interesses (Mendes, 2015: 280-281; Palmeira, 2006: 170).
A aproximação dos defensores da tradição à política é um grande perigo – eles olham para a Democracia como um produto da modernidade como algo importado do Ocidente, mas esquecem-se que a própria Democracia é muito antiga e que é, em si própria, uma tradição. Até porque no contexto actual não é consensual a ideia de que a Democracia seja um regime político típico do Ocidente (Mendes, 2015: 311, 548-549).
Como sociólogo e politicólogo guineense/africano, considero que, se o regime político democrático for descartado a favor de um modelo dito “puramente africano”, há uma grande possibilidade de a língua portuguesa poder vir a ser também descartada como língua oficial dos PALOP. Ou seja, quem recusa aceitar a Democracia como regime político apropriado para África não poderá aceitar as línguas europeias em África. No entanto, este aspecto não é considerado por Portugal e nem pelo sector intelectual português/ocidental que, geralmente só se referem ao facto de o regime político democrático não pertencer nem ser adequado para a Guiné-Bissau/África (Mendes, 2015: 268).
De acordo com Popper, as tradições têm uma função dupla: por um lado, criam uma certa ordem, ou uma estrutura social e, por outro lado, fornecem uma base a partir da qual podemos agir, «algo que podemos criticar e mudar». Adopto, tal como Popper, a segunda visão. Reconheço que, mesmo quando defendemos que algumas tradições devem ser rejeitadas e substituídas, «deveríamos permanecer sempre conscientes do facto de que toda a crítica social e todo o melhoramento da sociedade têm de ter como referência um quadro de tradições sociais, entre as quais algumas são criticadas por oposição a outras». Assim, é possível substituir uma tradição intolerante, segregadora e elitista por outra tradição mais tolerante, liberal e democrática. O que não devemos nunca é aceitar a tradição como um dado adquirido, imutável e isento de críticas (Popper, 2006: 169-185).
Espero ter conseguido responder às questões colocadas e conto com mais comentários às minhas publicações.
Para mais informações, consultar o meu livro: Mendes, Livonildo Francisco (2015). Modelo Político Unificador – Novo Paradigma de Governação na Guiné-Bissau. Lisboa: Chiado Editora.
Parabéns por dar esta Excelente explicação. Às vezes fico triste com a situação que ocorre no nosso país mas, por outro lado sinto-me optimista por conhecer pessoas como vc e outros intelectuais da nossa geração. Reforçando a sua ideia de Importação do modelo, gostaria de referir o pensador brasileiro Guerreiro Ramos, que defendia que os modelos não podem ser copiados mas sim adaptados à realidade local.
ResponderEliminarRaul Mendes